Uma carta ao meu pai
Por Marcos André
[huggosdealrua@gmail.com]
O seu silêncio era estupefaciente!
Meu pai tinha uma forma
de calar estrondosa. Preenchia a sala com o seu silêncio – tinha uma forma de
calar com dizeres de tudo dito – sem “nãos”, sem gritos.
De frente ao televisor,
inerte, nenhum movimento meu o despreocupava. Estava “tudo dito” e ele estava
convicto de que eu não agiria de forma contrária. E assim era!
Ele só era assim
comigo!
Era legal com todo o
mundo. “Ti[1]
Zawangoni!”, “Ti Mitxumu!” – assim o chamavam, com respeito e admiração. Meu pai
nem era chefe de quarteirão, mas eu presenciava audiências lá em casa. Pessoas que
o procuravam incansáveis para pedir conselhos e solução para os seus problemas.
As vezes vinham pedir dinheiro, as vezes emprego, as vezes ajuda para conseguir
um emprego.
Em nenhuma das vezes vi
alguém sair sem resposta. As respostas eram, muitas das vezes, contundentes mas
nunca adiadas e, em nunhuma ocasião comentou conosco o que lhe era exposto.
Foi sempre um exemplo!
Lembro-me que a minha
mãe andava constantemente doente e o meu pai sempre pernoitava no quartel, anos
que ainda arrastavam rumores da guerra finda.
Numa bela manhã vi meu
pai se levantar, aprumar-se e sair caminhando a sua sensatez. Eu levantei-me
também e o acompanhei. Dirigiu-se até a casa do vizinho Muthemba – “Bom dia,
Muthemba!...Se a minha esposa não levantar em duas horas, eu te enfio trinta e
duas balas!” – disse meu pai. Disse mais - “Se você quiser a minha esposa, pode
levá-la, e me dê a sua que eu a tornarei linda e asseada tal como a minha….Tem preguiça
de comprar sabão!?...Já te falei! Tenha um bom dia!”. Foi a primeira, das três
vezes na vida, que vi meu pai portando uma arma de fogo. Apesar de servir o
exército há mais de trinta e cinco anos.
Acompanhei os passos
firmes do cota[2],
de volta para casa. Meu pai respirava um ar de quem sabia o que tinha dito,
enquanto se preparava para o trabalho. Nesse momento alguém batia a porta. Quem
poderia ser?! - Muthemba!
“Vizinho, você
entendeste malo, mas eu pode ajudar. Pode preparar uma papinha para a senhora
agora?” – dizia Muthemba.
“Dona Gina”, a moça que
trabalhava lá em casa, de imadiato preparou as papas sob intrução de Muthemba.
Muthemba pegou as papas e deu a minha mãe, que mal conseguia falar, já há quatro
dias se encontrava semi-morta naquela cama.
Logo que engoliu as
papas, a minha mãe ressuscitou. Escrito aqui, isto até parece um conto, mas é
verdade. Eu presenciei este milagre. Deus que me mande um trovão agora!
São terríveis os
Maziones[3] da
Catembe.
Impressionava-me o
jeito do meu pai com as mulheres. Me refiro as mulheres de casa. Era um autêntico
galã. Acho que a minha irmã e a minha mãe não têm muito a reclamar. Depois de um
longo dia de trabalho, ele voltava e perguntava “O que há para o jantar?”. - “Makhofu[4]!” –
respondia a minha mãe. Logo, ele a convidava para o restaurante da zona. Acho que
nunca mais irei presenciar tamanho romantismo.
“Ilda, prepare-se!
Vamos!” – A minha mãe costurava as suas rugas com maquilhagem e vestia a sua
roupa mais bonita.
Papá não era muito de
flores. Lembro-me que eu era quem oferecia flores a mamã no dia de São
Valentim. Papá não era nada disso! Ele vestia a sua esposa com as roupas mais
caras, a convidava para os lugares mais esplêndidos. As vezes eu via que ele
nem estava lá, de tanto cansaço, mas sentava e conversava, enquanto a minha mãe
se fazia à um bom vinho e música.
Tive bons exemplos!
O tempo passou - silêncios
estrondosos, das coisas que nunca foram verbalizadas. E eu estou aqui, a seis continentes.
A outra parte da vida aprendi nessas ruas, nessa liberdade inventada.
Hoje olho para a minha
filha Marlena – a comedora de papéis – às vezes ela me bate, me acaricia,
grita, se ri de mim, morde com o seu único dente de meia idade, sorri e abraça
e, nesse momento eu queria ouvir algumas palavras do meu pai a dizer-me o que
devo fazer. As vezes dá saudade de ser filho!
Bem…esta carta,
dactilografada de pretérito, até se parece vestir de luto. Mas não é nada
disso. Está tudo bem.
A parte mais recente do
pretérito, eu a sei pouco. Já faz tempo que eu e o meu pai não sabemos um do
outro. Acho que inventamos erros e desculpas.
Eu também me calo por
aqui!
Espero que o estrondoso
silêncio desta carta te faça redigir uma resposta.
Espero rever-te pai!
Um abraço!
Marcos André